Escravidão é tema de um dos melhores livros sobre a história de Santa Luzia

Escravidão é tema de um dos melhores livros sobre a história de Santa Luzia
Escravos indo à igreja para serem batizados – reprodução da obra de Jean B. Debret

Pesquisadora Carolina Perpétuo Corrêa, da UFMG, traça um perfil da população escrava da cidade no século 19 e revela etapa importante da formação do povo luziense; segundo a pesquisadora, quase toda a população da cidade tinha sangue negro

Barbosa Chaves

É frequente ouvirmos que a história de Santa Luzia é rica e deve ser preservada. Considerando que a cidade tem mais de três séculos, é natural supor que os luzienses tenham testemunhado importantes fatos da riquíssima história de Minas Gerais. No entanto, faltam informações fundamentais para que possamos ter uma ideia mais clara da trajetória da cidade nos últimos trezentos anos. Nossa história é feita muito mais de lendas e casos do que de pesquisa histórica.

Tese de mestrado da autora foi transformada em livro

O livro ‘Tráfico Negreiro, Demografia e Famílias Escravas em Santa Luzia, Minas Gerais, Século XIX”, da pesquisadora Carolina Perpétuo Corrêa, vem preencher algumas lacunas da história de Santa Luzia. A partir de dados de batistérios – ou certidões de batismo – de escravos ao longo de boa parte do século 19, a pesquisadora traça um perfil acurado da população cativa na cidade nas décadas que precederam a abolição em 1888.

Mais do que introduzir o escravo na religião católica, o batistério funcionava como uma espécie de registro de propriedade do negro. O sacramento era, na verdade, uma chancela da propriedade do escravo pelo senhor que o batizava. Daí a importância desse registro na pesquisa da historiadora.

Carolina Correa Perpétua

Não há no trabalho de Carolina ilações, conjecturas nem informações que passam de boca em boca e que, obviamente, são deturpadas ao longo dos séculos. O que temos no livro é pesquisa histórica com todo rigor acadêmico, o que raramente foi feito até hoje em relação à nossa história. Nele ficamos conhecendo as principais etnias dos africanos que vieram para Santa Luzia. Aprendemos que a maioria da população da cidade era mestiça e que poucos eram os escravos que se casavam na igreja, o que explicaria o grande número de filhos de cativos batizados como ilegítimos.

Só por isso, o livro lançado recentemente pela Editora Primas, já seria leitura obrigatória para quem se interessa pela história da cidade. Mas a autora vai além e consegue dar à obra um ritmo agradável, com texto claro e bem contextualizado. Trata-se, em resumo, da obra mais séria e mais bem escrita até hoje sobre a história de Santa Luzia.

Entreposto comercial
Uma das primeiras constatações do livro é que, apesar de ter experimentado alguma prosperidade no século 19, Santa Luzia nunca fez parte do grupo de áreas mais dinâmicas e ricas da província de Minas. Mas foi um importante entreposto comercial nas rotas que ligavam vastas regiões do norte e oeste da província aos caminhos que levavam ao porto do Rio.

Essas circunstâncias faziam de Santa Luzia uma localidade bem típica das Minas Gerais do século 19. E, segundo a autora, o estudo da escravidão na cidade pode contribuir para a compreensão do sistema escravocrata em regiões com características semelhantes.

Carolina Correa dedicou-se a investigar as estratégias que os senhores de Santa Luzia utilizaram para manter e ampliar seu contingente de escravos quando o tráfico foi proibido em 1831 por pressão da Inglaterra. O embargo ao transporte de negros da África demorou a sair do papel, mas, a partir de sua entrada em vigor, ficou mais difícil e mais caro comprar negros vindos do continente africano.

O tráfico foi proibido em 1831 e dificultou a aquisição de novos escravos – Reprodução de Navio Negreiro, de Rugendas

A autora sugere que os donos de escravos incentivavam as relações entre eles para aumentar seu plantel, o que nem sempre significava uma união sacramentada pela igreja. Boa parte dos proprietários permitia que seus escravos vivessem juntos sem a benção de um sacerdote. Pelos registros de batismo, a pesquisadora constatou que apenas 33% dos filhos de mães escravas eram legítimos, ou seja, frutos de matrimônio reconhecido pela igreja. A enorme maioria era de filhos naturais.

Para ilustrar a atitude dos senhores de escravos em relação ao matrimônio de cativos a autora descreve um desentendimento entre um coronel e um vigário da região a respeito da união dos escravos Jacinta e Sinfrônio. Em carta, o coronel reclama ao presidente da província que o vigário cobra muito caro e impõe entraves à união dos negros. E que diante dessa situação, ele decidiu que o casamento dos dois fosse realizado pelo capataz da fazenda, sem a presença de um pároco.

“Foi então distribuído um barril de cachaça, ouvindo-se mil vivas aos noivos, seguidos de marimbas e tambores”, descreve o coronel, referindo-se às comemorações das bodas de Sinfrônio e Jacinta, que viveram como marido e mulher mesmo sem as bênçãos da igreja.

Sangue negro

Por volta de 1830, quase toda a população luziense tinha sangue negro –ilustração da Enciclopédia Larrousse

“Tráfico Negreiro, Demografia e Famílias Escravas em Santa Luzia, Minas Gerais, Século XIX” teve origem na dissertação de mestrado de Carolina Corrêa em 2005, na UFMG. Mas a obra, editada este ano pela Prismas, foi acrescida de novas informações tendo em vista o aumento da produção acadêmica sobre o tema da escravidão em Minas nos últimos anos.

O meticuloso exame dos documentos das várias paróquias de Santa Luzia permitiu à autora concluir que, por volta de 1830, um terço da população luziense era de escravos crioulos ou mestiços, denominações que se davam aos cativos já nascidos no Brasil.

A autora explica que, depois de 1831, quando entrou em vigor o tratado entre Brasil e Inglaterra extinguindo o tráfico negreiro, começou a declinar o número de ‘novas peças’, como eram chamados os escravos comprados em mercados do Rio de Janeiro. A partir daí, a população de escravos cresceu por reprodução natural.

Primeiro barão de Santa Luzia, um dos maiores senhores de escravos da região – Acervo do HSJD

Segundo a autora, no início da década de 1830, praticamente toda a população de Santa Luzia tinha sangue negro nas veias. Apenas 8% dos habitantes da cidade foi declarada branca na Lista Nominativa de Habitantes de 1831, que teria sido o primeiro recenseamento da população da cidade. Os crioulos, pardos, cabras e africanos, cativos ou alforriados, compunham a imensa maioria dos luzienses.

Entre os escravos que vieram para Santa Luzia, a maioria é originária do Congo, Angola e Moçambique, mas nem sempre o batistério registrava a origem precisa dos cativos. Alguns eram identificados pela nação à qual pertenceriam ou à região da África onde foram capturados, como Cabinda, Benguela e Mina.

Escravos dos barões
Um dos maiores senhores de escravos de Santa Luzia foi, segundo os registros de batismo, o barão Manoel Ribeiro Vianna, rico fazendeiro que, mais tarde, se tornaria o primeiro barão de Santa Luzia, marido da baronesa Maria Alexandrina de Almeida. Ribeiro Vianna era o dono de 117 escravos batizados no período que a pesquisa abrange.

O segundo barão de Santa Luzia também foi um grande proprietário de escravos

Apenas dois ou três outros senhores podiam competir ele em número de cativos. Um deles foi o segundo marido da baronesa, Quintiliano Rodrigues da Rocha Franco, segundo barão de Santa Luzia.

Além de lançar luz sobre esse período da história da cidade, o livro de Carolina Corrêa nos ajuda a entender melhor a escravidão no Brasil, cujas chagas ainda são visíveis na sociedade brasileira. Quase cinco milhões de africanos desembarcaram no Brasil entre os séculos 16 e 19. Minas chegou a ter um quarto de toda a população cativa do país.

Entender como os escravos se incorporaram à vida econômica e social do Brasil é essencial para a compreensão do próprio país e do processo de formação do nosso povo. Essa é, seguramente, a maior contribuição deste livro.

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1 Comment

  • nenez
    18 de julho de 2018, 18:47

    Interessantíssimo! Verdadeira história! Ótimas fotos!

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