Mais de 400 mil mortes: quatro famílias e a dor de despedidas antes dos 40 anos

Mais de 400 mil mortes: quatro famílias e a dor de despedidas antes dos 40 anos
Cinthia Matias da Silva, com a mãe, Eunice, moradoras de Santa Luzia, e a foto de Michelle, que morreu aos 32 anos: doença interrompeu vida intensa (foto: Gladyston Rodrigues/EM/DA Press)

Gustavo Werneck, Estado de Minas

Os números disparam, se multiplicam na casa das centenas de milhares de mortos no país, mas ainda são menores que a dor de parentes e amigos, para quem resta a saudade profunda de pessoas queridas vítimas da COVID-19. Sofrimento não tem idade, mas parece ser ainda maior quando se chora a partida repentina de pessoas no auge de seus projetos.

Em homenagem aos mais de 400 mil brasileiros que perderam suas vidas para a pandemia, o Estado de Minas conta as histórias de alguns deles, homens e mulheres com até 40 anos de idade que se foram deixando entre quatro famílias laços desfeitos e planos pessoais sepultados. Trajetórias que são também um grito de alerta para os riscos da doença, mesmo para pessoas jovens e saudáveis.

Michelle desejava estudar no exterior. Danúbia começaria no emprego novo e a irmã Vanessa voltava à terra natal depois de cinco anos. Conhecido pelos atos solidários, Valdinei se formaria em assistência social no fim do ano, enquanto Elias não deixava nada para depois. Era casado, trabalhava, amava a vida e adorava música. Na despedida, recebeu a homenagem dos amigos: o rock preferido, do Guns’N’Roses, cujo título em português é “Batendo na porta do céu”.

Uma jovem do seu tempo: estudava, trabalhava, gostava de viajar, de estar com os amigos, de ir a shows e de “corujar” os sobrinhos Bernardo, de 5 anos, e Lucas, de 2 anos. Assim era a extrovertida e responsável Michelle Matias da Silva, de 32 anos, que morreu às 12h30 de 8 de abril, vítima da COVID-19. “Minha mãe e eu estamos em um luto sem fim, com uma dor que nunca vai passar. Vamos apenas aprender a conviver com ela”, conta, com o sentimento que dilacera o coração, embaça os olhos e ainda faz tremer a voz, a irmã Cinthia Matias da Silva, de 34, que vive com a mãe, Eunice Ferreira, de 52, e filhos em Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.

“Minha mãe e eu estamos num luto sem fim, com uma dor que nunca vai passar. Vamos apenas aprender a conviver com ela” – Cinthia Matias da Silva, irmã de Michelle que morreu aos 32 anos e morava em Santa Luzia, na Grande BH
(foto: Arquivo pessoal/divulgação)

Michelle tinha muitos planos, mas casamentos e filhos não estavam na lista. “Ela dizia que meus filhos já bastavam para ela, que inclusive era madrinha do mais novo, o Lucas. Tinha paixão pelos sobrinhos”, recorda-se Cinthia, ainda aprendendo a conjugar os verbos no passado para se referir a uma pessoa tão querida e de convívio diário.

Nascida e criada em Santa Luzia, Michelle era técnica em tecnologia da informação e fazia curso superior em sistemas de informação. Devido à pandemia, passou a trabalhar em casa, em modo remoto. “Gostava muito de assistir a séries na televisão e sair com os amigos, mas, na quarentena, ficou quieta em casa. Viajava bastante, porém os passeios também foram deixados para quando tudo passasse”, diz a irmã, lembrando que Michelle tinha outra paixão: crossfit.

Sintomas
As mudanças tiveram início em março. “Comecei a sentir os primeiros sintomas e minha irmã, também. Fiz o teste e deu positivo. Consequentemente, por estarmos juntas, ela também estaria, pois morava no andar de baixo com minha mãe, enquanto eu no de cima, com meus filhos.”

Diante da presença do novo coronavírus, as irmãs se isolaram para não transmitir à mãe. “Só que no oitavo dia comecei a passar muito mal e procurei o médico. Estava com princípio de pneumonia. Fui medicada e continuei no isolamento. Os sintomas dela eram mais fracos do que os meus, então ela não procurou o médico”, ressalta Cinthia.

Em 12 de março, no 13º dia após o aparecimento dos sintomas, Cinthia perguntou à irmã se estava melhor. “Respondeu que sentia muita dor no peito e no corpo, e não quis ir ao médico. Mas, quatro dias depois, acordou muito mal, sem conseguir respirar direito. Então minha mãe e eu a colocamos no carro e levamos para a UPA (unidade de pronto-atendimento).”

No dia 13, Michelle foi transferida para o Hospital São João de Deus “e depois não teve nenhuma melhora”, afirma Cinthia, lembrando que a irmã ficou “cinco dias resistindo na máscara no centro de terapia intensiva até ser intubada”. Antes do procedimento, a paciente pediu para falar com a irmã, pois estava com muito medo. “Depois disso, nunca mais ouvi a voz dela. Foram 28 dias internada, 23 no CTI, 16 intubada, depois traqueostomizada.”

Rock na despedida

Também no mês passado, moradores de Brumal e Sumidouro, em Santa Bárbara, na Região Central de Minas, se despediram do amigão do peito que adorava rock e as alegrias da vida. Elias Isaías de Oliveira, conhecido por Tcheco, morreu aos 35 anos e ganhou emocionante homenagem da comunidade de Sumidouro, onde morou. O adeus foi ao som da sua música favorita, “Knocking’On heaven’s door”, do Guns’n’Roses. A escolha não poderia ser mais adequada, já que o título, em português, quer dizer “Batendo na porta do céu”.

Natural de Barão de Cocais, Elias era operador de equipamento para perfuração de túneis, e casado com Betânia Francismeire Braga, tendo uma filha de união anterior. “Era uma pessoa muito extrovertida, verdadeiro ‘crianção’. Aproveitava tanto a vida que se tornava impossível ficar triste ao seu lado. Adorava música de qualidade”, conta Betânia, mãe de Bruno, de 22, e Ana Paula, de 18. “Elias cuidou dos meus filhos como se fossem dele.”

Festeiro, sempre que podia Elias reunia familiares e amigos, “e era a alegria de todos”. Betânia revela que o marido “procurava viver um dia de cada vez, intensamente, como se fosse o último.” “Se tem uma coisa que não podemos dizer dele é que não viveu… E como viveu. Sempre muito apegado à família, aos amigos, queria comemorar tudo, independentemente da data. Um bom amigo e protetor.”

Mas tanta alegria foi embora de repente. “No início, sentia muitas dores, mas nada fora do normal. Foi a uma consulta médica, e, acredito, já precisaria ser internado, mas o mandaram voltar para casa. Na consulta seguinte, em 23 de fevereiro, foi preciso interná-lo.”

Conforto
Nas palavras de Betânia, a dor da perda é grande e inacreditável. “O que nos conforta é saber que ele cumpriu seu papel maravilhosamente, sempre disposto a ajudar a todos, sem medir esforços.”Com o coração ainda apertado, Betânia diz que questões pessoais nunca foram motivo para Elias ficar triste ou se lamentando por algo que não deu certo. “Nesses momentos, enxergava a oportunidade de recomeçar. Hoje, sentimos que falta uma parte de nós – não só para familiares e amigos, como para a comunidade inteira de Brumal, os colegas do trabalho, enfim, todos aqueles que o cercavam. Hoje só nos restam lembranças boas e saudade. Muita saudade.” O desejo maior agora é que Elias “descanse em paz, e que Deus lhe dê o melhor lugar, pois cumpriu muito bem os papéis de esposo, pai, amigo, filho e irmão”.>

“As perdas seguidas não deixam a dor passar”

Minhas sobrinhas eram pessoas muito ‘pra cima’, e, cada uma a seu modo, estavam recomeçando a vida. As perdas são irreparáveis, principalmente para minha irmã, agora sem as duas filhas” – Valéria Alves, tia de Vanessa, de 40 anos, que morreu em Governador Valadares
(foto: Arquivo pessoal/divulgação)

Em Governador Valadares, na Região Leste de Minas, uma família chorou, em dezembro, duas perdas e ainda experimenta um sofrimento tamanho que nem o tempo é capaz de abrandar. Pesam ainda nas lembranças, o Natal, de tristeza absoluta, a passagem de ano, que ficou sem sentido, os dias que se tornaram cinzas e cobertos de tristeza. No intervalo de 24 horas, Maria de Lourdes Pereira Venâncio perdeu as duas únicas filhas. Ainda tenta se recuperar dos golpes mortais deferidos pela COVID-19.

Danúbia Pereira Venâncio, mão de Emanuel e Gabriela, morreu em 10 de dezembro. Faria aniversário em 2 de janeiro. No dia seguinte, também vítima do coronavírus, quem partiu foi Vanessa Pereira Venâncio, de 40, mãe de Heric, Thalles e Raphael. Seu aniversário seria dez dias depois.

“Ainda estamos muito abalados. O sentimento de perda vai durar muito. É na fé que temos nos amparado”, conta a jornalista Valéria Alves, irmã de Maria de Lourdes. Nas fotos da família, nos tempos pré-pandemia, é possível ver todo mundo junto, se abraçando, comemorando datas importantes. “Minhas sobrinhas eram pessoas muito ‘pra cima’, tinham planos, e, cada uma a seu modo, estavam recomeçando a vida”, completa Valéria.

Danúbia havia “estudado bastante” e passado em concurso da prefeitura local para o cargo de auxiliar administrativo. Vanessa retornara à cidade natal após morar cinco anos em Diamantina, no Vale do Jequitinhonha. “As duas estavam bem animadas com a vida.”

Coração grande
Valéria, que também teve COVID-19, ressalta que Danúbia era dona de um grande coração. “Maior do que o mundo, pois, quando passei mal, fez questão de ir comigo ao hospital.” Na sequência, quando um tio foi internado na UTI, também esteve presente para ajudar no que fosse preciso.

Quando adoeceram, as irmãs, que não tinham doenças associadas, ficaram internadas durante sete dias em hospital de Governador Valadares. “Os laços foram desfeitos, as perdas são irreparáveis, principalmente para minha irmã, agora sem as duas filhas. Vamos ter fé para tentar colocar a vida de novo no eixo, mas as perdas seguidas de amigos não deixam a dor passar, parece que estamos em estado permanente de luto”, acredita Valéria.

Jovem solidário

“Estudava serviço social e se formaria este ano. Queria trabalhar na área de Saúde, mas também gostava de se divertir” Valdevino Rodrigues, de Alfenas, no Sul de Minas, que perdeu o filho Valdinei, de 31 anos, em 9 de abril
(foto: Arquivo pessoal/divulgação)

Longe dali, em Alfenas, no Sul de Minas, palavras não bastam para explicar a morte de Valdinei Aparecido Rodrigues, aos 31, em 9 de abril. Para entender e suportar tal sofrimento, “é preciso ter fé e acreditar na vontade de Deus”, diz o pai do rapaz, Valdevino Rodrigues, de 61, casado com Maria Ivone Alves Rodrigues. Os dois têm também a filha Valdirene Alves, formada em administração.

Funcionário durante 10 anos de uma ótica em Alfenas, modelo fotográfico e estudante de serviço social, Valdinei se formaria este ano, e queria trabalhar na área de Saúde. Mas também curtia se divertir com os amigos. “Era solteiro, gostava muito de ir a shows, de ouvir música sertaneja”, afirma o pai, explicando que o filho nasceu em Divisa Nova, também no Sul de Minas, e ainda criança se mudou com os parentes para Alfenas.

Recentemente, a família chorou a perda das avós de Valdinei (a materna, de câncer; a paterna, por complicações em decorrência da COVID-19). O rapaz, também influencer nas redes sociais, adotara o sobrenome Lima da avó paterna.

Campanha
Os sonhos de solidariedade de Valdinei vão continuar pelas mãos de seus amigos. Como ele estava sempre disposto a ajudar o próximo a qualquer hora, foi criada a campanha “Faça uma mãe feliz”, batizada de Valdinei Lima. Serão recolhidos alimentos e material de limpeza para os necessitados no período anterior ao Dia das Mães. Quem quiser ajudar pode entrar em contato com Valdirene, no e-mail valdirenealves@hotmail.com.

Diz o texto da campanha: “Faça uma mãe feliz” é a forma solidária que encontramos para homenagear nosso amigo, irmão e influencer Valdinei Lima. Quem o conheceu sabe como o acadêmico do curso de serviço social amava ajudar o próximo, trazendo muita alegria e bom humor. Nesta época de pandemia, muitas famílias passam por sérias dificuldades financeiras. Que tal, no Dia das Mães, entregarmos um pouco da nossa solidariedade?”

Saudável
Sem qualquer tipo de doença associada, Valdinei era um jovem saudável, que bebia socialmente. Esses foram alguns dos motivos para a evolução da doença surpreender os médicos. “Ficou a grande perda, uma enorme saudade. Mas somos muito católicos e temos fé em Deus para continuar a vida”, conforta-se Valdevino.

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