A matéria é perecível no tempo. O patrimônio, intangível na essência, atravessa séculos e marca a vida dos homens
Beto Mateus
No sábado, véspera do Domingo de Ramos, um gigante da paisagem luziense deu sinais de sua fraqueza, e parte de seus membros rompeu-se, avançando sobre um típico quintal colonial, esmagando taiobas, jabuticabeiras e outras árvores frutíferas. Avançando nos domínios de sua sombra, alcançou o telhado dos fundos da antiga casa de Amália Martins. Era o velho jatobá do Carmo dando sinais de seu fim próximo, no pequeno grande mundo dos luzienses.
Num sinal que ainda estamos tentando decifrar, algumas pistas podem ser decisivas para compreender a queda de uma das maiores árvores de nosso centro histórico, a mais lembrada, a mais antiga que se tem notícia datada.
Como em um brado de protesto, será que o velho jatobá não admitiu dividir espaço com o novo e deteriorado modelo da Santa Luzia dos novos tempos? Se antes ele conseguia estabelecer com as árvores do quintal de Aniceta diálogo verde e ecologicamente correto, será que o velho jatobá não admitiu ser observado pelas inúmeras janelas indiscretas que agora dominam a passagem do velho beco de Amália? Não pensando duas vezes, ele preferiu mesmo sair do protagonismo da cena urbana. E, assim, ao entardecer de mais um sábado de sua centenária existência, ele começou o ensaio de seu desaparecimento. Santa Luzia perdeu o jatobá de todas as nossas infâncias. Ficamos órfãos, nós, a família luziense. Ficamos órfãos nós e a família Martins.
Por essa, a mais que estimada Dalma Martins, figura determinante na história de boa parte dos luzienses – responsável por décadas pelo Cartório de Registro Civil de Santa Luzia – não esperava passar em seus 94 anos. Afinal, todos eles foram ao lado do velho jatobá. E é Dalma que nos conta parte da história.
– O terreno comprado pelo meu avô, em 1879, teve como marcação de divisa o pé de jatobá. Antônio Rodrigues Martins era português da Província, como se dizia, manteve de pé a árvore, mesmo com as novas aquisições do terreno que iam para além dele.
Ciente da importância da árvore para a sua família, Dalma, que é a única neta que testemunha o fim do jatobá, diz que ele é presença marcante em mais de cinco gerações da família Martins.
– De 10 filhos, eu sou a única que está testemunhando o fim do pé do jatobá, infelizmente. A gente vai sentir saudade dele. Uma árvore tão bonita… A gente vai sentir falta, pois ele vai ser um grande vazio.
Na tarde em que o Corpo de Bombeiros já tomava as primeiras medidas de segurança, com a poda dos galhos mais altos, Dalma relembrava a figura de seu irmão Antônio Martins Júnior, o Toni.
– Toni nunca concordava com o corte do jatobá, mesmo com os apelos contrários. Ele dizia que o jatobá era uma existência em nossas vidas.
Para se ter ideia do que o velho jatobá representava para a família Martins era só estar ao lado de Dalma durante os dias que se seguiram à primeira queda. A todo o momento, chegavam sobrinhos, vindos da capital, e telefonemas de tantos outros lamentando a perda.
– Eu avisei muitos sobrinhos. Em toda família é o mesmo sentimento de perda, como se estivéssemos perdendo uma parte de nós.
Assim como o grande e centenário jatobá era uma presença na família, também era um patrimônio para Santa Luzia, que lamentou a perda. Era possível observar durante toda a tarde do domingo, e da última semana, a chegada de pessoas, de perto ou de longe, para acompanhar o corte da imensa árvore, que se arrastou por seis dias (seu tronco tem 1,50 de diâmetro!).
Seja no olhar calado do vizinho Juquinha ou do jovem motoqueiro que descia da sua moto para conferir, o espanto e tristeza com o desaparecimento do gigante era o mesmo.
O luziense Edison Tibúrcio, defensor das tradições da cidade, relembra a placa que demarcava a ancianidade da árvore.
– Em setembro de 1987, nas comemorações do dia da árvore, o meu pai Antônio Tibúrcio Henriques, numa promoção do jornal O Luziense, mandou instalar a placa que estava lá até o início dessa semana: “Esta árvore, de 130 anos é o elo entre 2 séculos”. Após o descerramento da placa, a família Martins serviu um café para todos, que ouviram a apresentação musical de um acordeonista trazido por meu pai.
Concordando que a árvore era um patrimônio de Santa Luzia – a cidade perdeu o jatobá de todas as nossas infâncias-, mas consciente da necessidade de ter que cortá-lo para evitar uma tragédia maior, Dalma encontra consolo em sua fé.
– Alguns sobrinhos não seguraram as lágrimas, mas vamos fazer o quê? Assim Deus quis.
2 Comments
nenez
2 de abril de 2018, 20:27otima reportagem!!!
REPLYCândida Corrêa Côrtes Carvalho
2 de abril de 2018, 23:15Beto, compartilho, não apenas no face, mas com a minha alma, o meu coração, com o sentimento de dor, sensação de perda e a ruptura de um laço forte que unia os luzienses… . Imagine se ele falasse, quntas histpórias teria par nos contar….mas nós podemos e é o que você e seus conterrâneos podem fazer, lembrado o que viveu, que lembranças boas têm, vividas à sombra do velho Jatobá.
Meu carinho.
Cândida Corrêa Côrtes Carvalho
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