Uma relação especial com o Dia de Santa Cruz

Uma relação especial com o Dia de Santa Cruz
Moradores celebram no cruzeiro da Rua da Cruz, perto do Icaraí, nesta quinta, 3 de maio – Foto: Rodrigo Martins

Beto Mateus

Maior objeto de devoção dos cristãos, tema de versos do poeta maior Tibúrcio de Oliveira, inspiração dos gols de um dos clubes de futebol mais tradicionais fundado nessa mesma data, Santa Luzia tem especial relação com o dia 03 de maio. Seguindo antigos costumes dos tempos coloniais, alguns moradores ainda revivem nos dias de hoje, Dia de Santa Cruz, a tradição de ornamentar esse símbolo cristão presente nas encruzilhadas da velha cidade.

Em toda Minas Gerais, e ao longo da história do surgimento dos povoados, os cruzeiros sempre foram instalados ao longo das estradas, no cume dos morros ou nos cruzamentos dos caminhos, para proteção dos viajantes dos riscos que os cercavam – índios violentos, assaltantes e animais selvagens.

Um dos cruzeiros mais completos é este, que fica no adro do Mosteiro de Macaúbas

Em Santa Luzia, os cruzeiros se espalharam ao longo das vias de passagem, à beira das estradas, como verdadeiros relicários da fé capazes de reunir em torno de si alguns rituais da devoção popular. Japhet Dolabella, no clássico Santa Luzia nasceu do rio… (1984, p.167) – uma das obras mais completas sobre os antigos costumes da cidade, relembra a implantação dos cruzeiros:

– Contam os antigos moradores do lugar que os primeiros cruzeiros erguidos no velho Bom Retiro, achavam-se no antigo Caminho dos Bandeirantes, como marcos. Este caminho passava pelo Campinho, Igreja de Sant’Ana, hoje Rua Detrás, indo até a atual Igreja Matriz. Tenho a impressão de que estes cruzeiros já desapareceram com o “progresso”. No entanto, suponho que o do Alto de Santa Cruz ainda exista.

O cruzeiro que Japhet cita é o do campo Santa Cruz, clube de futebol fundado em 03 de maio de 1930. Apesar de não conservar a iluminação noturna – era o único iluminado nos anos de 1960, hoje ele tem ao seu lado a capela dedicada à Nossa Senhora das Graças. Mas, alguns outros cruzeiros ainda existem na paisagem luziense.

Um dos mais tradicionais é o do cruzamento das ruas Santa Cruz com José Silvino Teixeira de Melo, próximo ao Clube Icaraí. Todo 3 de maio e 14 de setembro ele recebe ornamentação especial (com as cores variadas do papel crepom) e as orações dos que moram ao seu redor. Até bem pouco tempo, o grupo contava com os cânticos da saudosa Nezinha, que entoava em voz forte os versos que exprimem a devoção popular: “O meu coração é só de Jesus, a minha alegria é a Santa Cruz”.

Cruz dos Martírios

No ano de 2014, o habilidoso marceneiro José Oswaldo garantiu a restauração do cruzeiro instalado no adro do Mosteiro de Macaúba

Um dos cruzeiros luzienses mais completos é, sem dúvida, o que está no adro do Mosteiro de Macaúbas. Ornamentado com os instrumentos das torturas sofridas por Jesus, ele é classificado pelos estudiosos como a Cruz dos Martírios. Recentemente restaurado para os festejos do tricentenário do Mosteiro pelo marceneiro José Oswaldo, o cruzeiro exibe, atualmente, mais de 30 peças diferentes – chamadas martírios – que compõem todo o momento da crucificação de Cristo. São elementos como o chicote, os dados que lançaram sorte da túnica, a caveira, lanças, escada, a bolsa de moedas de Judas etc.

Aos pés desse cruzeiro, as irmãs concepcionistas ainda rezam, principalmente quando os período de estiagem são mais longos – promovem a procissão da penitência e molham os pés do cruzeiro, com orações que pedem o fim da seca e o início das chuvas. De acordo com a abadessa do Mosteiro, Maria Imaculada de Jesus Hóstia, as orações são certeiras: “´É uma tradição muito forte na zona rural que a gente faz questão de continuar, para pedir chuvas quando a seca é muito intensa”.

Igreja de Santana, na rua Detrás, e seu cruzeiro enfeitado na década de 1930, no registro do fotógrafo Wilson Baptista

Outros cruzeiros
No centro da cidade ainda podemos encontrar cruzeiros no cruzamento das ruas Santa Luzia, Serro e Dr. Francisco Vianna Santos (antiga rua da Lapa) – que inclusive dá nome à região: Cruz das Almas; das ruas Silva Jardim com Helton Guimarães Werneck (antiga rua do Caju), restaurado há alguns anos pelos moradores, e um enorme cruzeiro no cruzamento das Ruas José Pedro de Carvalho com João Cota, ao lado da antiga Igreja de São João, no bairro da Ponte.

Já outros desapareceram com o tempo e ficaram somente registrados nas memórias e nas fotografias, como um que era tradicionalmente festejado e decorado ao lado da também demolida Igreja de Santana, e que aparece em um registro do fotógrafo Wilson Baptista (1913-2014), na década de 1930. Um dos mais recentes, já não exibe sua iluminação noturna no Monte Sião, no bairro Boa Esperança. Outro mais distante, e até bem pouco tempo existente, e que reunia devotos com festas a seu redor, é um que está à margem da estrada que liga Santa Luzia a Sabará, logo após o Muro de Pedras.

Para manter viva a devoção e a prática religiosa em torno dos cruzeiros, na noite de hoje, 03 de maio, alguns devotos se reúnem aos pés do cruzeiro da Rua Santa Cruz, com missa celebrada pelo pároco Danil Marcelo dos Santos. Na comunidade quilombola de Pinhões, às 20 horas, ocorre o levantamento da bandeira de Santa Cruz, pela Guarda de Congo do Divino Espírito Santo.

Antigo cruzeiro, no caminho para a Ponte Pequena, já não exibe mais os martírios de Jesus. Acervo Associação Cultural Comunitária de Santa Luzia/Márcio Castro Silva

Símbolo de veneração
Vários elementos e lugares ligados aos momentos de tortura vivenciados por Jesus Cristo passaram a ser procurados pelos cristãos, como símbolo maior de veneração e fé. Por volta do ano de 312, o imperador Constantino estava em batalha pelo poder de Roma. Somente depois de seguir a orientação, , recebida durante uma visão, de que deveria imprimir no escudo de seus combatentes o sinal da cruz, é que Constantino teria conquistado Roma.

No ano de 320, sua mãe Helena, deu ordens para que fosse procurada no Oriente Médio a cruz em que Jesus teria sido crucificado. Encontrados os remanescentes do que seria a cruz sagrada, Helena os colocou sobre doentes que, em seguida, foram curados. Dessa forma, foi iniciada a veneração à Santa Cruz (também chamada de Invenção da Santa Cruz), cuja celebração foi marcada para o dia 03 de maio.

Apesar da grande devoção popular nesse dia, principalmente na América Latina, a Igreja Católica decidiu unificar a celebração, passando a comemorar em 14 de setembro, dia da Exaltação da Santa Cruz.

Cruzeiro da Rua Santa Cruz enfeitado para as celebrações – Foto: Beto Mateus

Velho Cruzeiro

Tibúrcio de Oliveira (1882-1962)

Braços abertos para o mundo inteiro,

Símbolo de perdão e de bondade,

De longe é visto no cimo do outeiro,

Guardião dos destinos da cidade!

Se passa por ali um forasteiro,

Os pés lhe beija com sinceridade,

Pois todos sabem o santo cruzeiro

O emblema redentor da humanidade!

Relíquia de valor para o Brasil

Que tem por ele o céu assinalado,

Todos o cercam de veneração.

A nossa Pátria augusta e varonil

Vivendo à sombra do Crucificado

Espera merecer-lhe a proteção.

Leave a Comment

Your email address will not be published. Required fields are marked with *