O velho templo pede socorro

O velho templo pede socorro
A Igreja de São João Batista, na Ponte, era assim quando foi construída em 1904

Paulo Sérgio Giovannini, Luzias

Lembranças do passado nos reservam intensa nostalgia, mas,também, felicidade. Inocentes brincadeiras nos grandes quintais e o banho gostoso no rio de águas cristalinas. A Santa Luzia de minha infância era especial: parte baixa e parte alta separadas, ou melhor, unidas pelo Rio das Velhas.

Detenho-me no momento às recordações da igreja que frequentava. Vejo que nossa história está sendo reconhecida. Não sou apegado ao passado: recorro a ele apenas por questões práticas. Mas, nossa história não pode ser apagada assim, diante de nossos olhos. Cito uma frase, cujo autor não me ocorre agora: “se quiser que algo morra, deixe-o quieto”.

Hoje, o imponente santuário está assim

Meses atrás, visitei mentalmente o antigo templo de minha infância. Imponente, embora de pequenas dimensões, despojado de adornos, era cuidado com grande carinho pelas moças de então. Havia as que limpavam; outras, habilidosas no manuseio das agulhas, costuravam e bordavam o linho que cobria a mesa da celebração, bem como as pequenas cortinas do Sacrário. Os cálices, ambulas e demais peças litúrgicas brilhavam como ouro.

Encantava-me a alvura do corporal e do sanguíneo, aqueles panos usados na hora da consagração. Nos domingos à noite toda a família se dirigia para lá. Era um preceito que se cumpria sob pena de se cometer pecado. Vestíamos nossa “roupa de missa”, sempre a mais nova que ganhávamos. Acomodávamos nos bancos de madeira, aguardávamos em respeitoso silêncio.

Paulo: grandeza de alma

Enquanto isso, meus olhos curiosos percorriam todo o interior da construção. Recordo-me não só dos detalhes do prédio, mas também das pessoas que ali frequentavam. Eu tinha uma curiosidade especial pelo coro. Era, no entanto, local terminantemente proibido para crianças. Só ao coral era concedido esse privilégio.

Aos primeiros acordes do harmônio e do violino, ficávamos todos de pé. Era o início do culto. Nossos ouvidos e nosso coração se abriam para o canto afinadíssimo de um coral bem ensaiado. Surgiam então no corredor, entre os bancos, duas crianças vestidas de coroinha: uma segurava o turíbulo e a outra trazia o incensário. A seguir, o padre, com seu paramento vistoso, o qual mudava de cor de acordo com o tempo litúrgico. Devagar, acenava com a cabeça para todos. Um leve sorriso denunciava que todos haviam sido absolvidos de suas culpas,no confessionário.

Já no altar, o balanço do turíbulo em brasa fazia exalar uma fumaça perfumada, num gesto de reverência. No momento da consagração, o celebrante elevava a hóstia e o cálice ao som do carrilhão. As mulheres, ao menos a partir desse momento, cobriam suas cabeças com um véu rendado que traziam de casa, cuidadosamente dobrado.

Rachadura acima da janela

O fato me intrigava: ao mesmo tempo em que as mulheres cobriam, os homens desnudavam suas cabeças, retirando os chapéus. Ao final, a bênção do Santíssimo Sacramento. No momento em que o padre erguia o ostensório ouvíamos uma voz feminina, já trêmula pela idade, entoar o “tantum ergo”. Todos sabíamos quem tinha o privilégio de puxar o canto. Ato contínuo, coral e assembleia se uniam à senhorinha em esplêndido louvor.

Os anos se passaram, e foram muitos. Hoje, sempre aos sábados à noite, na mesma igreja, continua à espera da Santa Missa. Meus olhos vagueiam por todos os lados. Vejo trincas nas paredes e aberturas nas pesadas portas e janelas. São como feridas em um corpo judiado pelo tempo e pelo descaso. A porta do Sacrário já não é a mesma: a original fora furtada. Desleixo.

Diante desses e outros sinais e sintomas, decidi voltar durante o dia. À luz natural, todas as mazelas se revelariam com maior clareza. Fiquei impressionado com o que vi. Parei diante da porta que dá acesso ao coro e então decidi que era o momento de penetrar por inteiro pelas entranhas do local proibido de minha infância. Subi as escadas em caracol para alcançar o coro central.

Portas consumidas pelo tempo

Avistei ali, a um canto, o velho harmônio coberto por um pano vermelho desbotado. Tudo ali estava corroído pelo tempo e pelos cupins. Não resisti à curiosidade e subi a outra escada que dá acesso à torre do sino. Era como se eu estivesse dentro de uma masmorra. O madeirame que servia de sustentáculo para a torre central apresentava aspecto lastimável. Bastou um toque com meus dedos para que uma avalanche de carunchos e fragmentos de madeira podre despencasse sobre minha cabeça. Virei-me rapidamente, mas com cuidado, para deixar o local. Foi quando me dei de frente com o sino. A corda presa em seu badalo era um convite para que eu a puxasse. A prudência, no entanto, agora se fez presente, o que me levou a recuar. Afinal, aquela era uma corda velha demais e, ao puxá-la, com certeza se romperia, arremessando-me escada abaixo.Não queria morrer ali como uma das vítimas de Nazaré, a personagem.

Voltando à terra firme, decidi. Tomei a iniciativa de socorrer o velho templo. Somos hoje um grupo que promove eventos e recebe doações para sua restauração. De concreto, temos um cronograma das obras a serem realizadas. Já neste semestre daremos início à primeira etapa dos trabalhos. Será uma longa jornada, para a qual pedimos o apoio de todos aqueles que valorizam a história luziense.

Restaurando a igreja de São João Batista estaremos resgatando uma parte muito importante da história de nossa cidade.

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3 Comments

  • Paulo Giovannini
    22 de abril de 2018, 13:36

    A equipe da Igrejinha de Sao Joao Batista envia os mais sinceros agradecimentos ao Luzias, pelo enorme apoio que nos tem dispensado.Esperamos vida longa a este veiculo de comunicaçao, que ja se mostrou seriamente comprometido com nossa cidade, sua gente e sua historia.

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  • celeste massara
    24 de abril de 2018, 10:40

    Paulo Sérgio Giovannini, suas palavras contêm muitas saudades , e que saudades! No entanto, é triste saber que o nosso passado vai aos poucos se perdendo em razão da passagem do tempo e da falta de recursos para recuperação dos danos! Naquela igrejinha, vivi doces momentos da vida! Quero participar do trabalho de restauração que você está iniciando! Conte comigo!

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    • Paulo@celeste massara
      24 de abril de 2018, 11:35

      Cara Celeste, o desleixo com nossa história nos inquieta. Não podemos acudir a tudo o que é ignorado em nossa cidade, mas, com o apoio de pessoas,
      assim como você, resgataremos o possível. Um grande abraço.

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