Wagner Penna
Estado de Minas
A emoção dos fiéis nas cerimônias da semana santa, nas cidades históricas de Minas, tem nas procissões a representação simbólica da mensagem de dor, sofrimento, drama e fé – mas também de esperança e renascimento – que as liturgias católicas enviam aos seus devotos naquele período. Nessas ocasiões, as vestes de tons púrpura, às vezes negras, pontuadas com rendas e tecidos pesados nas capas ou mantos, carregados em dobraduras por Nossa Senhora das Dores, enfatizam o clima dramático da Paixão de Cristo.
A força cromática das vestes das Dores alcança o domingo da ressurreição, quando a imagem ressurge no seu altar envolta em roupas de tons mais claros, refletindo a paz e alegria da mãe de Cristo por ter seu Filho resgatado em plenitude espiritual e esperança renovada. Em Santa Luzia, esses rituais vêm sendo respeitados há mais de um século – com seus detalhes, simbolismos e roupagens conservados cuidadosamente. E, para mostrar um pouco dessa fé e dedicação, foi aberta a exposição “Entre vestes e costumes: A devoção luziense a Nossa Senhora das Dores”, montada na igreja do Rosário, no centro histórico da cidade.
PRESERVAÇÃO – A iniciativa da Paróquia de Santa Luzia objetiva enfatizar uma tradição religiosa – mas também mostrar às novas gerações a importância de se preservar um patrimônio cultural e religioso. Como explica o pároco, padre Felipe Lemos de Queirós, a ideia da exposição comemorativa surgiu diante do pedido do arcebispo, Dom Walmor Oliveira de Azevedo para comemorar o centenário da Arquidiocese – algo que deveria ter três tipos de ações: uma social, outra espiritual e uma cultural. Nesta última proposição, ajustou-se a exposição sobre as vestes de Nossa Senhora das Dores.
Ele lembra que os aspectos simbólicos dessas vestes estão nos cuidados, no zelo e na fé da comunidade local para com Maria, pois são peças doadas pelos moradores e pelas famílias luzienses – que sempre buscam tecidos e adereços (seja em viagens ou pesquisas) para elaborá-las. Além de ser uma tradição, observa o padre, é também um mimo, carinho, zelo religioso e cultural e reafirmação da crença mariana – que é tão forte para os católicos.
Sobre a importância da exposição, o padre Felipe observa que essa ação “lembra a devoção de um povo e traz para os jovens e novos cristãos o aprendizado em se valorizar o passado. Nós não poderemos sobreviver no futuro sem lembrar que temos como base nossas raízes, nossos antepassados, nossa cultura. Também traz o sentimento de pertencimento ao se preservar a história e respeito às origens”.
TRADIÇÃO – A exposição “Entre vestes e costumes: A devoção luziense a Nossa Senhora das Dores” foi coordenada por Maria Goretti Gabrich Freire Ramos, do Memorial da Arquidiocese de BH, que, também, é responsável pela guarda das roupas – assunto ao qual se dedica desde a adolescência.
Segundo ela, tudo começou com sua tia Luzia Fonseca, junto com a amiga Lúcia Dolabela, que a levavam para ajudar na conservação das vestes – algo que faz até hoje – e também para cuidar do andor para as procissões. Ela lembra que até o ato de troca das roupas (para as cerimônias da semana santa), convertia-se em liturgia sagrada – com a igreja matriz toda fechada, a proibição de entrada de homens durante o ofício e toda uma sequência obedecida na substituição das peças.Além das túnicas, os conjuntos incluem capas, véus, mantos, os lenços para as mãos e até roupas inferiores , além de adereços como brincos, broches e abotoaduras. Nas procissões, a cabeça é coberta com cabelos naturais.
Ela lembra que as pessoas têm o maior carinho em doar tecidos para elaborar esses conjuntos, além de doar seu próprio tempo de trabalho para sua elaboração – seja costurando, seja realizando bordados e aplicações e outros. “É um trabalho de doação de muitas pessoas, refletindo a devoção dos luzienses por Nossa Senhora das Dores”, observa Maria Goretti.
SIMBOLISMO – O simbolismo das cores das vestes de Nossa Senhora das Dores revelou-se desde o início do seu culto, na Idade Média, segundo explica o historiador e presidente da Associação Cultural Comunitária de Santa Luzia, Adalberto Mateus. Ele assinala que, em Minas, as irmandades de Nossa Senhora das Dores estão presentes desde o século 18. Em Santa Luzia, a primeira capela dedicada à santa existia em 1844.
O pesquisador explica que durante as cerimônias da quaresma e semana santa, as vestes de Nossa Senhora são substituídas para expressar, visualmente, cada momento específico acompanhando a liturgia da celebração da Paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
No setenário de Nossa Senhora das Dores, celebração que antecede a semana santa e se estende durante sete dias, a imagem tem as vestes substituídas a cada dia, demonstrando as diferenças entre cada uma de suas sete dores, expressadas em aflição e angústia.
Já durante a semana santa, tradicionalmente na terça-feira santa, a imagem é preparada para a procissão do depósito de Nossa Senhora, em que as paradas nos Passos representam a busca do seu Filho. No dia seguinte, na quarta-feira das trevas, a imagem de Nossa Senhora é preparada para o encontro, quando, já diante do Filho, passa a acompanhá-lo. Nesses dias, é tradicional o uso de roupas de cores sóbrias, como o roxo ou o azul. Já na sexta-feira da Paixão, a imagem é vestida em roupas escuras, acompanhada de um véu preto que lhe cobre o rosto em sinal de luto pela morte de Jesus.
Somente na celebração da ressurreição, no domingo da Páscoa, e nos dias que se seguem, é que a imagem ganha vestes mais claras, geralmente acompanhadas de detalhes dourados – na interpretação das alegrias de Nossa Senhora. Algumas das peças da exposição continuam a cobri-la durante todo o resto do ano, quando fica em seu próprio altar, no santuário.
O ACERVO – Responsável pelo histórico das peças, Marco Aurélio Fonseca informa que os tecidos mais usados são sedas, brocados adamascados, tafetá de seda pura francês, renda francesa, tecidos indianos – entre outros. Há também bons tecidos de origem nacional em alguns trabalhos.
Ele destaca a riqueza artesanal das roupas, com rendas de bilro feitas por artesãs da cidade, as aplicações douradas francesas (a mais antiga data do século 19), outras mais recentes trazidas da Espanha, rendas marroquinas – além das mantilhas, mantas s e véus em rendas importados da Península Ibérica.
Detalhe interessante também assinalado por ele são as ‘roupas de baixo’ (como camisolas e anáguas) feitas em linho e algodão leve.
Nas cores, tanto as roupas quanto os complementos têm nas tonalidades púrpura (do roxo ao lilás, passando pelo vinho) seu ponto alto, seguidas pelo preto, o azul (em tons variados), o bege e o branco.
A delicadeza dos adereços, como brincos (em filigrana espanhola), abotoaduras e adornos, completam o visual tocante da imagem. Para concluir, antes da saída da imagem, perfumes trazidos da França em flacons especiais são aspergidos sobre as vestes, observa Marco Aurélio.
Para dar a ideia mais realista da imagem durante as procissões, duas delas foram montadas para a exposição em andores tradicionais, guarnecidos com palmas douradas ou em tons púrpura – feitos especialmente para a ocasião. Toda a estrutura para a exposição das roupas foi feita na técnica ‘santo de roca’ (ou santo de vestir) valorizando os 19 conjuntos expostos.
FICHA TÉCNICA – Realização: Santuário Arquidiocesano de Santa Luzia e Memorial da Arquidiocese de Belo Horizonte – Apoio: Associação Cultural Comunitária de Santa Luzia – Curadoria: Márcio José Gabrich Fonseca Freire Ramos (coord.), Maria Goretti Gabrich Fonseca Freire Ramos, Adalberto Andrade Mateus, Luiz Felipe César Martins de Brito – Produção executiva: Márcio José Gabrich Fonseca Freire Ramos, Francisco José Gabrich Fonseca Freire Ramos – Pesquisa: Adalberto Andrade Mateus – Histórico das Peças: Marco Aurélio Fonseca – Projeto expográfico: Márcio José Gabrich Fonseca Freire Ramos – Identidade visual: Estúdio Muvuca – Montagem: Capibica – Fotos divulgação: @helilarafotografo
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