Gustavo Werneck, Estado de Minas
À primeira vista, aos olhos leigos, parece uma peça esculpida por algum dos artistas que fizeram o esplendor do Barroco mineiro. Mas, quando examinada pelos especialistas, a história não é tão fiel assim. E pode confundir, tipo “gato por lebre”. No leilão programado para a noite de ontem, no Rio de Janeiro (RJ), com lances apenas on-line devido à pandemia do novo coronavírus, um dos destaques estava, conforme o material de divulgação, na “imponente escultura barroca de um menino, em madeira policromada, século 18, altura de 105cm”. Valor: R$ 42 mil.
No entanto, ao analisar as fotos do objeto, a equipe de restauradores da superintendência em Minas do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) notou traços grosseiros e enxergou muito mais uma cópia do que um original, embora sejam necessárias análises, com exames técnicos e científicos. Se a manga da veste é quadrada – “evidência de algo malfeito”–, a sandália tem cano de bota, a pátina (envelhecimento) é nova e a talha não tem movimento. Segundo os organizadores do leilão (o repórter não se identificou como jornalista, mas como um interessado em arte), não há um laudo detalhado a respeito da escultura, sendo a avalição própria dos donos do antiquário. Dessa forma, tudo transcorre numa relação de “confiança” entre o comerciante e o comprador.
A situação ocorre 17 anos após a grande campanha deflagrada em Minas para valorização do patrimônio cultural, notadamente a fim de impedir furtos de igrejas, capelas, museus, prédios públicos e outra locais. Por coincidência, tudo começou num leilão no Rio – naquela época, 2003, foram resgatados os três anjos do Santuário Arquidiocesano de Santa Luzia, na Grande BH, por meio de ação ajuizada pela Associação Cultural local e cumprida pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha). Se desta vez não se torna necessário retirar a peça do pregão, fica evidente a necessidade de manter viva a campanha, acredita a superintendente do Iphan, Débora do Nascimento França. Além da fiscalização no comércio, para impedir o tráfico de peças sacras sem documentação, Débora destaca a importância do corpo técnico. “Com restauradores capacitados, podemos verificar se há adulteração de obras e ter maior controle”, afirma.
Minas procura
Conforme o último levantamento do Ministério Público de Minas Gerais, por meio da Coordenadoria das Promotorias de Justiça do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais (CPPC), que tem como titular a promotora de Justiça Giselle Ribeiro de Oliveira, há, do patrimônio mineiro, 742 peças desaparecidas e 539 judicializadas. Em 17 anos da campanha, foram apreendidas 419, incluindo imagens, castiçais, sinos, partes de altares e outros bens.
Na lista, que contém objetos desaparecidos desde 1848, há muitas peças atribuídas a Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738-1814), o “mestre do barroco”. As apreensões se tornaram fruto de apreensões do MPMG, polícias Federal, Militar e Civil ou entregues espontaneamente. O objetivo do MP é devolver as peças aos locais de origem, por serem objetos de devoção das comunidades e patrimônio cultural das cidades.
História e fé
Quem chega ao Santuário Arquidiocesano de Santa Luzia, que adota um esquema especial para missas presenciais nesse tempo de pandemia, pode ver dois anjos ladeando a tarja do arco-cruzeiro e outro, o do sepulcro, no coroamento do altar de Nosso Senhor dos Passos – é bom ressaltar que essas peças teriam sido vendidas, e não roubadas. Para especialistas, a história da preservação do patrimônio cultural de Minas tem um divisor de águas caudaloso: a mobilização em Santa Luzia, na Grande BH, se propagou em todo o estado e as comunidades passaram a lutar pela volta de obras de arte e de peças sacras desaparecidas, ao longo do tempo, de igrejas, capelas, museus e prédios públicos.
Foi um grito contra o furto de peças sacras e outras obras de arte que movimentam o comércio clandestino. De acordo com a Interpol, só é superado, no mundo, pelo de drogas e armas. De forma pioneira, Minas passou a ter uma política específica para a preservação do acervo histórico, algo inédito no país, contando com a participação de instituições públicas e privadas. Outro setor que ganhou força foi o de educação patrimonial, disseminado de forma ampla na capital e no interior e com resultados positivos entre os jovens, disse ao EM o promotor de Justiça da comarca de Santa Luzia, Marcos Paulo de Souza Miranda. Na época, começaram a trabalhar de forma integrada as secretarias estaduais da Cultura e da Defesa Social, Iepha, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), polícias Federal, Militar e Civil, ministérios públicos Federal (MPF) e de Minas Gerais (MPMG), Igreja, Associação das Cidades Históricas e outros.
Em matérias diárias, a equipe de jornalistas do EM denunciou a dilapidação dos templos barrocos, divulgando, igualmente, ações positivas, do poder público ou da comunidade, para garantir a integridades dos tesouros mineiros. Numa iniciativa do MPMG, foi criado um serviço de inteligência, com banco de dados, para localizar e identificar peças sumidas, enquanto a Interpol faz um rastreamento internacional.
Faça contato
Qualquer informação sobre as peças desaparecidas deve ser comunicada aos órgãos competentes. Veja como acioná-los
Ministério Público de Minas Gerais, via Coordenadora das Promotorias de Justiça de
Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico (CPPC): pelo telefone (31) 3250-4620, pelo e-mail seccultural@pmmg.mp.br ou carta para Rua Timbiras, 2.941, Bairro Barro Preto, Belo Horizonte, CEP 30.140-062
Iphan: pelos telefones (31) 3222-2440 / (61) 2024-6342 / (61) 2024-6355 / (61) 2024-6370 ou pelos e-mails depam@iphan.gov.br, cgbm@iphan.gov.br e faleconosco@iphan.gov.br
Iepha: pelos telefones (31) 3235-2812 e (31) 3235-2813 ou pelo e-mail www.iepha.mg.gov.br
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