O projeto que vai tornar a culinária patrimônio cultural de Minas Gerais

O projeto que vai tornar a culinária patrimônio cultural de Minas Gerais
A matéria de Gustavo Werneck na primeira página do Estado de Minas

Gustavo Werneck, Estado de Minas

Broa de fubá, bolo, feijão-tropeiro, tutu, angu para acompanhar o frango caipira e outras delícias bem mineiras – são muitos e variados os pratos à base das farinhas de milho e de mandioca, uma tradição recriada nas cozinhas que atravessa os séculos e acerta em cheio o paladar de brasileiros e estrangeiros. Para valorizar o preparo das iguarias, bem como as casas de farinha e os moinhos de milho, o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha) conduz um cadastro das atividades artesanais que deverá resultar no reconhecimento como patrimônios material e imaterial das Gerais, pelo Conselho Estadual do Patrimônio Cultural (Conep). Muito mais do que isso, e junto a outras riquezas estaduais, a exemplo do café, as farinhas são pilares de um projeto maior da Secretaria de Estado de Cultura e Turismo (Secult). Amanhã, às 16h, o secretário Leônidas Oliveira vai lançar o Plano da Cozinha Mineira e abrir o processo para reconhecimento da Cozinha Mineira como patrimônio cultural.

A presidente do Iepha, Michele Arroyo, informa que os levantamento feitos pela instituição mostram que Minas tem mais de 300 casas de farinha e moinhos de milho distribuídos por cerca de 200 municípios. Devido à pandemia do novo coronavírus, o reconhecimento pelo Conep ainda não ocorreu, mas está assegurado, após todos estudos, que os dois produtos e os estabelecimentos ficarão no mesmo patamar de outros bens culturais já destacados: o queijo da região do Serro (Vale do Jequitinhonha), as folias de Reis, pastorinhas e demais grupos e o modo de fazer e tocar a viola. “A cozinha mineira é muito ampla e rica, e serão contemplados todos os aspectos, incluindo as receitas, os utensílios, a história, o modo de fazer e também a religiosidade, pois temos alimentos típicos das festas juninas católicas e também dos cultos de matriz africana, que são as comidas de santo”, explica Michele. Ela lembra que a origem desses produtos veio dos indígenas, passou pela mão africana e pelos povos ibéricos e outros europeus que chegaram a Minas desde o início da colonização do território.

Verdadeira “devoção” à produção das farinhas de milho e mandioca está presente no estabelecimento dos sócios João Fonseca Marques e Maria Efigênia Martins, no Bairro Carreira Comprida (Frimisa), em Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Com 85 anos e muita vitalidade, “seu” João conta que aprendeu o ofício com a mãe, dona Luísa, quando era criança e morava em fazenda no município vizinho de Jaboticatubas. “Tenho paixão pelo que faço, principalmente pelo estabelecimento que vejo mais como um museu, pois aqui estão o trabalho e parte da minha história, das minhas memórias. Também é um local de lazer”, conta o homem que já teve mercearia e produz, com o nome Vô João, fubá, as farinhas de milho e de mandioca, também na variação torrada, e colorau feito de urucum.

Em outros tempos, os sócios chegaram a produzir mensalmente 150 fardos ou 1,5 mil kg. “O que mais prezamos é a qualidade, o modo artesanal. Se for para fazer de outro jeito, preferimos parar”, concordam os dois.

Não deixa de ser emocionante ver “seu” João mostrando parte por parte do sistema de produção, como moinho de pedra de milho, o fubá saindo amarelinho de tão novo, o triturador e a prensa para o processamento da mandioca e, finalmente, os produtos ensacados. “Veja este aqui. Ainda está quentinho, acabou de ser embalado”, indica Maria Efigênia o pacote de farinha torrada. Ela dá as boas-vindas ao reconhecimento do setor, pois evidencia o trabalho, valoriza a tradição e dá mais visibilidade à atividade.

IDENTIFICAÇÃO – O cadastro para o inventário das farinhas de milho em Minas identificou, desde outubro de 2019, mais de 300 casas de farinhas e moinhos espalhados por 200 municípios mineiros. Com maior número de estabelecimentos cadastrados estão Serro (23) e Itinga (10), no Vale do Jequitinhonha, Águas Vermelhas (10), no Norte de Minas e São José do Mantimento (9), na Zona da Mata.

O cadastro foi lançado durante as comemorações do Dia do Patrimônio Cultural 2019 – Cozinha e Cultura Alimentar, com objetivo de identificar e inventariar os locais de produção, produtos e produtores de farinhas de milho e de mandioca, “que são a base da alimentação de grande parte dos mineiros”, conforme os pesquisadores do Iepha. O estudo integra as ações para reconhecimento desses saberes como patrimônio cultural do estado. Conforme o Iepha, o cadastro para as farinhas e demais produtos fica em aberto, no site www.iepha.mg.gov.br

A pesquisa é um desdobramento do inventário do Rio São Francisco, realizado em 2014, no qual o instituto identificou uma série de práticas culturais vinculadas à cultura alimentar naquela região. Segundo Michele, desde então, o aprofundamento das pesquisas dessas tradições culturais, que são centrais em relação aos modos de vida e suas especificidades no território de Minas Gerais, foi uma prioridade do órgão. “Com o inventário das farinhas de milho e de mandioca, o jogamos luz sobre o conhecimento da pluralidade que envolve esse fazer cultural no Estado e tem como primeiro resultado do trabalho, o cadastro das casas de farinhas e moinhos de milho.”

COSTUMES– De acordo com as pesquisas, o hábito alimentar reúne uma série de práticas e valores sociais relacionados à afetividade e a cultura “que despertam nossas memórias e vivências e são parte formadora da identidade coletiva”. O processo é complexo e envolve várias etapas como a produção, o plantio, a preparação, o consumo e o descarte.

Em Minas, as farinhas de mandioca e de milho representam a base do preparo de vários alimentos que estão enraizadas nas receitas, no preparo e nos sabores espalhados pelo estado. Além disso, os processos e produção são base do sustento de muitas famílias e comunidades. As casas de farinhas e os moinhos são locais de produção que funcionam como espaço de encontro e de sociabilidade das pessoas que se reúnem em torno do ofício e reproduzem suas tradições.

Assim, o inventário é importante instrumento de proteção que auxilia tanto na identificação quanto na gestão desses bens culturais. “O levantamento e o diagnóstico realizado a partir do mapeamento permite uma aproximação com as comunidades e a sociedade em geral, e a definição de quais os rumos que a proteção deve seguir, colaborando assim para o estabelecimento de uma política pública sólida e democraticamente construída”, ressalta Michele.

Para o diretor de Proteção e Memória do Iepha, Fernando Pimenta, mais do que pratos típicos, a cozinha tradicional local é parte fundamental da identidade social. “A abertura do cadastro das farinhas em Minas constitui um passo fundamental para a proteção dessa manifestação cultural com vistas, inclusive, a fortalecê-la diante da dramática disputa de mercado no setor.”

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