Fugindo do nazismo, ele está no Brasil há 83 anos e vive em Santa Luzia

Fugindo do nazismo, ele está no Brasil há 83 anos e vive em Santa Luzia
Michel Jacques Romeu mostra o passaporte com o qual entrou no Brasil há 83 anos. Foto:  Leandro Couri/EM/D.A PRESS

Uma história das mais fascinantes do francês Michel Jacques Romeu, que desembarcou com 13 anos no Rio de Janeiro, em 1940, A reportagem é de Gustavo Werneck, do Estado de Minas.

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Um livro de História e de muitas histórias se abre, diante dos olhos e ouvidos atentos, quando Michel Jacques Romeu mostra o passaporte com o qual desembarcou no porto do Rio de Janeiro (RJ) em 30 de abril de 1940.

Nas três fotos, estão o menino de 13 anos, a irmã, Liliana, de 10, e a mãe, Marguerite, os quais, juntamente com o pai, Miguel Romeu, deixavam a França ocupada pelos nazistas, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em busca de um porto seguro e recomeço de vida.

“A guerra é terrível. Em tempos de conflito, o cidadão comum não consegue fazer nada. Parece que, com o tempo, as pessoas vão se acostumando”, afirma o francês naturalizado brasileiro, de 96 anos, dos quais oito décadas residente em Belo Horizonte. O comentário, feito com serenidade, diz respeito tanto à Segunda Guerra, com duração de seis anos, como sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia, que completará um ano no próximo dia 24.

Passando a mão sobre o passaporte bem-conservado, Michel parece voltar no tempo com palavras certeiras, raciocínio rápido e compreensão dos fatos passados e presentes. Nascido em Paris, “perto da Avenida Lafayette”, filho de um comerciante e alfaiate espanhol e de mãe francesa, ele lembra com detalhes da saída do seu país.

“Meus pais foram aconselhados a partir, pois muitas famílias estavam sendo perseguidas. Estavam fugindo da guerra, por não saber o que iria acontecer, pois a situação era muito incerta no país. Primeiramente, pensaram em ir para a Espanha, mas lá também estava do mesmo jeito”, conta.

Foi então que decidiram pegar o navio rumo à Argentina, onde morava um primo, então prior de uma comunidade de religiosos franciscanos. Esse destino, no entanto, acabou sendo desencorajado pelo parente, e, assim, surgiu a opção de vir para o Brasil, embora sem planos de ficar.

Michel tornou-se fazendeiro e vive em Santa Luzia(MG). Foto: Leandro Couri/EM/D.A PRESS

 A conexão entre França e Argentina é a deixa para o repórter migrar rapidamente para a atualidade e comentar sobre a partida final da Copa do Mundo – o assunto não desconserta Michel, que, durante a entrevista, passava uns dias no seu sítio, na zona rural de Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte: “Puxa! A Argentina, hein? Criando problemas para os franceses não é de hoje!”.

Sem franzir a testa ou se mostrar incomodado, Michel se limita a dizer que não se perturbou com o resultado do futebol, preferindo uma comparação mais profunda. “A Argentina era um país forte, naquela época. Nada do que é hoje.”

FAROFA E FEIJÃO Os nazistas ocuparam Paris em 1940, mas Michel ressalta que os alemães já estavam na França havia meses. “Diante da situação, a primeira providência dos pais residentes na capital foi retirar todas as crianças de Paris e levá-las para o interior.

Minha irmã e eu fomos para o sítio da minha avó, e de lá vimos bombardeios.” Antes, para fugir das bombas lançadas pelos alemães, a família se protegeu na adega, no subterrâneo do prédio onde moravam, transformada em abrigo antiaéreo.

Com a cidade ocupada e a vida em perigo, a família Romeu embarcou no navio Bagé para o Brasil, e, um mês depois, chegou ao Rio. Foi na viagem que Michel travou os primeiros contatos com os trópicos, recebendo como “entrada” a farofa e o feijão preto. “Nunca tinha visto aquelas comidas. Foi tudo novidade”, afirma antes de explicar que, em Minas, só se come feijão preto em feijoada. “No Rio, é que comem feijão preto todo dia.”

No transatlântico Bagé, a família conheceu judeus brasileiros que fugiam do líder nazista Adolf Hitler (1889-1945), e, no grupo, estava um carioca que ajudou Miguel e Marguerite nos primeiros tempos. O casal e os dois filhos ficaram na capital fluminense por dois anos, morando em hotéis. “Meu pai trouxe dinheiro, mas, em país estrangeiro acaba logo.”

A conversa volta a 2022, ano do início da invasão da Ucrânia pela Rússia, fazendo o francês levar a mão à testa, passar os dedos sobre a vasta cabeleira e repetir que a guerra é algo terrível. “O pior é que, com o tempo, parece que as pessoas vão se acostumando. Difícil, mesmo, é sair do seu país e sobreviver.”

OPORTUNIDADES Retornando ao passado, abrem-se outras páginas. Entre 1942 e 1943, Miguel recebeu a proposta para trabalhar como alfaiate na Casa Guanabara, em Belo Horizonte, uma grande loja de departamentos, no Centro. Surgia uma nova fase, com as crianças já falando português e o pai podendo mostrar seu trabalho, que ganhou fama, mais tarde, com a Alfaiataria Romeu, “na Rua Guajajaras, depois na Avenida Augusto de Lima”. Mesmo com o fim da guerra na Europa, eles decidiram ficar em BH, e, ao país natal, o Michel voltou três vezes.

Michel cresceu e entrou para a Escola de Comércio e Contabilidade, e faz questão de citar o professor Hermínio Guerra. Trabalhou com o pai, tentou abrir uma fábrica de ternos masculinos, que não vingou, fez concurso para o Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (IAPI), no qual ficou cinco anos, e depois foi para o Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais, último posto antes de aposentar.

Na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), formou-se em economia e direito. Casado, em 1956, com a belo-horizontina Helena Pinheiro de Carvalho Brito Romeu, já falecida, teve quatro filhos: Margarida (falecida), Isabel, Heloísa e Marco Antônio. “Meu pai, Miguel, nascido em Barcelona, tocava violino, e foi um dos fundadores da Associação dos Alfaiates de Belo Horizonte, uma cidade que vi se transformar nos últimos 80 anos”, diz Michel, que tem seis netos.

ORIGENS Na varanda dos fundos do sítio, na localidade de Várzeas, na zona rural de Santa Luzia, Michel se declara um leitor contumaz, tendo como escritor favorito o francês Victor Hugo (1802-1885), autor do clássico da literatura universal “Les Misérables” (“Os Miseráveis). Entre as personalidades francesas que admira, “e são bons exemplos”, estão Joana D’Arc, “uma simples donzela que salvou a França”, e Charles De Gaulle (1890-1970), general, político e estadista francês, que esteve à frente das forças francesas livres durante a Segunda Guerra, e foi presidente do seu país. “Salvou a França três vezes”, orgulha-se.

Admirador do que a França tem de mais precioso, a História, Michel ensina que persistência e trabalho são fundamentais para o ser humano. “É fundamental também não perder o raciocínio, que é bem diferente de inteligência. Às vezes, uma pessoa é inteligente, mas não sabe raciocinar. E isso está ocorrendo no mundo inteiro…as pessoas não sabem raciocinar, que é refletir para dividir com os semelhantes”.

Ouvindo o pai, Marco Antônio mostra sua admiração pela vitalidade e amor à vida. “Minha avó (Marguerite) morreu com 105 anos. E ainda reclamou que estavam tirando dois anos dela”, brinca. No sítio que comprou há meio século, Michel desfruta da natureza e gosta do que vê. “Este lugar me faz lembrar um pouco do sítio da minha avó, no interior da França.”

Cheio de entusiasmo, e com uma pitada de bom humor, Michel faz planos para o futuro: “Vou empurrando com a barriga para ver até onde vou”.

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2 Comments

  • Dalma Lúcia Silva Esquifini
    27 de fevereiro de 2023, 22:16

    Boa noite, adorei a entrevista com o Sr. Michel. Queria que ele assistisse o filme, na Netflix, “ O destino de Hoffmann,” é muito interessante, uma história bem bonita. Abraços, Dalma

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