Maya Santana, Luzias
Esta semana, estive na sede da fábrica de tecidos, no Carmo, perto do cemitério. Fui confirmar a notícia que a fábrica, parte da paisagem luziense há 90 anos, está sendo fechada definitivamente. A informação, me disseram lá, está correta: a pioneira unidade fabril que, juntamente com a antiga fábrica de sabão, na Ponte, tornou-se a semente da industrialização de Santa Luzia, vai mesmo desaparecer. Já está a venda. Andei pelo seu interior, como fazia no tempo em que o meu pai era o gerente, e constatei que, na verdade, o que existe hoje é apenas um esqueleto, uma sombra do que foi no seu auge, quando chegou a ter quase 200 funcionários e o algodão cru que produzia era vendido para toda parte no Brasil. Um cenário desolador, com máquinas antigas, algumas importadas, que deveriam estar em um museu, abandonadas, ameaçadas de parar no ferro velho.
Há 10 anos, em abril de 2008, fiz uma longa reportagem sobre a agonia da fábrica. Alertada para sua difícil situação financeira, fui até lá conversar com o empresário Adilson Gonçalves de Souza. Ele confirmou o estado de penúria com esta frase: “A fábrica está mantendo a vela acesa.” Explicou que tentou modernizar a indústria, diversificou os seus produtos, mas nada deu certo. O golpe de misericórdia veio em 1992, com a eleição do presidente Fernando Collor. “Com a abertura dos portos que Collor promoveu, os chineses invadiram o mercado de tecidos e a fábrica se tornou inviável,” contou o empresário, falecido há cerca de três anos. A situação da fábrica de tecidos nunca melhorou, até chegar à situação em que se encontra agora.
Leia a íntegra da reportagem, que conta a história da fábrica pioneira, escrita em abril de 2008:
“A fábrica está mantendo a vela acesa.” É assim que Adilson Gonçalves de Souza, 68 anos, define a situação da empresa que já foi a maior empregadora do município. Idealizado por Francisco , Ribeiro de Castro, o lendário Dr. Castro, em março de 1928, o empreendimento chegou a ter quase 200 funcionários e a produzir 160 mil metros de algodão cru por mês, vendidos para, praticamente, todos os estados brasileiros. Hoje, grande parte de suas instalações – o terreno da fábrica tem 20 mil metros, dos quais 4.500 de área construída. O pequeno negócio, tocado pelo filho Aloysio, emprega apenas 14 pessoas e se restringe a fazer sacos alvejados, quase todos vendidos para comerciantes do Mercado Central de Belo Horizonte.
Quem passa pela Rua do Carmo, perto do cemitério, já notou também que parte da ampla construção, descaracterizada ao longo dos anos, está sendo usada como depósito de material para reciclagem, o que acentua ainda mais o aspecto de decadência da velha fábrica, que teve papel extremamente importante na vida social de Santa Luzia, assim como a sua companheira de pioneirismo, a fábrica de sabão, na Ponte.
Ambas merecem um estudo mais aprofundado, que revele a real dimensão do que representaram não só para o município luziense, mas para o estado de Minas Gerais, dado que, naquela época, a industrialização do próprio Brasil era ainda incipiente. Só na década de 1950 chegaria o Frigoríficos Minas Gerais S/A, Frimisa, e, a partir daí, dezenas de outras empresas espalhadas pelos cinco distritos industriais em que a cidade é dividida.
Inauguração concorrida
A inauguração da Fábrica de Tecidos S/A foi notícia de primeira página da histórica primeira edição do jornal Estado de Minas, com o título “Um importante estabelecimento fabril em Santa Luzia”. O evento teve tanta importância que, segundo o Estado de Minas, compareceram o então secretário estadual da Agricultura, Djalma Pinheiro Chagas, e outras figuras de destaque de Belo Horizonte. Muitos vieram ver as máquinas, quase todas compradas na Inglaterra, com exceção da engomadeira, produzida na Alemanha.
Empresário visionário e humanista que era, Dr. Castro criou uma empresa onde os funcionários tinham prazer em trabalhar. Era raro umafamília da cidade que não tivesse um parente trabalhando lá. Clara Carvalho Santana, 86 anos, funcionária da fábrica na década de 1930, não se esquece daqueles tempos. “Éramos uma espécie de uma família. Dr. Castro era adorado e todo mundo fazia suas funções mostrando satisfação,” recorda ela. Foi na fábrica, entre teares e muito algodão, que encontrou o companheiro de toda vida, José Santana, o Duca de Pinha, gerente geral da empresa por mais de três décadas. “Muito da vida de Santa Luzia girava em torno da fábrica de tecidos. Boa parte dos moradores, inclusive, se orientava por seus apitos, que quebravam o silêncio da cidade, pontualmente, às 4h30m, às 5h, às 7h, às 11h, às 13h30 e às 16h”, lembra Dona Clara.
Outro que tem os bons tempos da fábrica vivos na memória é Cândido Nogueira, de 87 anos, 33 dos quais dedicados à tecelagem. Começou a trabalhar em primeiro de maio de 1945, sete dias antes da data que o mundo não esquece: o fim na Europa da Segunda Guerra Mundial. Na varanda da casa onde mora, na Rua Santa Luzia, de onde se tem uma vista bonita, ele conta: “Tenho tanta saudade daquele tempo de Dr. Castro que sonho sempre que voltei a trabalhar na fábrica, com gente alegre e amiga, como Maria de Castro, Tião, Rosinha Zé dos Reis e tantos outros.”
“Era bom demais”
Ao lado de Cândido, a irmã Francisca Nogueira Funi, 85 anos, que também foi tecelã, lembra-se nitidamente do dia em que a guerra terminou: “Pararam a fábrica para comemorar. Todo mundo queria festejar.” Um detalhe que Francisca não esquece diz respeito ao pagamento: “Com Dr. Castro, o pagamento saía certinho. Nunca atrasou.” Mesmo numa época em que os negócios em Santa Luzia passavam por momentos difíceis, pois o fornecimento de água e energia elétrica eram interrompidos na cidade quase todos os dias.
Cândido recorda que a água para alimentar a caldeira era buscada no Rio das Velhas em tambores, numa carroça. Lembra também que a cidade era outra: “Um lugar quieto, gostoso de se viver. Não tinha violência. A gente podia dormir com a porta aberta. Por não haver televisão, a diversão era bater papo.”
É só mencionar o nome da fábrica para que ex-funcionários comecem a falar bem dela. “Só tenho boas lembranças dos 20 anos em que trabalhei lá”, diz Marcelos dos Santos, 72 anos, o famoso Pirumbinha, dos tempos áureos do Santa Cruz, encarregado da manutenção das máquinas. Aposentado, pai de cinco filhos, ele gosta de trazer de volta aquele tempo. “Meu chefe era Tinho de Dona Carmelita, de quem eu gostava muito. E tinha os amigos, Zé Carvalho, Chico de Sr. Aristides, Alberto de Teca, Sonita e os irmãos. Era bom demais.”
Começo do fim
Dr. Castro criou grandes laços de amizade na cidade e conseguiu levar seu negócio até a década de 1960, , quando, por motivo de saúde, vendeu a fábrica para o empresário Jessé Antônio da Silva interessado em ampliá-la e em criar um setor de estamparia. “Aí começou o fim”, rememora Cândido. “Aparentemente, Jessé não tinha dinheiro suficiente para tocar a fábrica. Começou a atrasar os salários. A produção despencou, chegando a 40 mil metros por mês, relembra com tristeza o ex-tecelão.
O golpe fatal viria alguns anos mais tarde. Com dívidas acumuladas, pagamento dos funcionários atrasados e maquinário em processo de franca deterioração, Jessé vendeu a fábrica para a família de Adilson Gonçalves de Souza. Foi em 1975, ano sombrio no Brasil, que vivia em plena ditadura militar. O empresário conta que decidiu fechar a empresa porque trabalhava com confecção em Belo Horizonte e precisava de 500 a 600 metros de tecidos por mês. O problema foi que, só depois que adquiriu a fábrica, verificou que o tecido feito em seus teares não atendia as suas necessidades. “Quando cheguei aqui, a fábrica tinha 172 empregados. Demiti 136 deles,” lembra ele.
Adilson conversa dentro da fábrica. Ao lado de um antigo funcionário, que já se aposentou, mas presta serviço lá. João Silvério, 67 anos, começou a trabalhar na engomadeira em 1970. E, embora o processo de engomar tenha mudado, quando retorna à fábrica duas ou três vezes por semana, ainda é para trabalhar na engomadeira, uma máquina imensa. “Gosto disso aqui. É onde passei boa parte da minha vida,” diz ele.
O empresário retoma a conversa. Explica que o tempo foi passando e as dificuldades se avolumando. “Acabei trocando todo o maquinário. Passei a fazer fraudas e bandagens, mas o não prosperou. A pá de cal, segundo Adilson, veio em 1992, quando Fernando Collor foi eleito Presidente do Brasil. “Com a abertura dos portos que Collor promoveu, os chineses invadiram o mercado de tecidos e a fábrica se tornou inviáve,” relata. Entre 1994 e 1995, as máquinas pararam de vez. Ele tentou fazer uma cooperativa com os funcionários, mas a empreitada também não deu certo.
Hoje, só uma parte bem pequena da fábrica funciona. Apenas 14 funcionários se dedicam a fabricar sacos. A vasta maioria das dependências da fábrica está ociosa. A sensação é mesmo que a de que “a fábrica está mantendo a vela acesa” e que a chama está prestes a se acabar.
Deu no Estado de Minas
A inauguração da Santa Luzia Industrial S/A, em 5 de março de 1928, ganhou espaço na primeira página do primeiro número do Estado de Minas. Quem recebeu um exemplar do EM, oferecido como brinde nas comemorações dos 80 anos do jornal, é só conferir na parte de baixo da página 5. Lá está a notícia: “Um importante estabelecimento fabril em Santa Luzia.”
Reproduzimos alguns trechos:
“O acontecimento levou àquella cidade numerosas pessoas desta capital, entre os quaes o sr. dr. Djalma Pinheiro Chagas, Secretário da Agricultura, que daqui partiu ao meio dia.”
“O sr. Secretário da Agricultura teve ali recepção carinhosa, realizando-se, logo em seguida à sua chegada, a bênção do novo estabelecimento.”
“Após esta cerimônia, foi servida aos presentes lauta mesa de doces, falando ao “champagne” o Sr. Senador Modestino Gonçalves, que saudou os diretores da nova fábrica. Agradeceu essa saudação o diretor-gerente, Sr. Francisco Ribeiro de Castro.
Falou ainda o dr. Djalma Pinheiro Chagas, que pronunciou um discurso enaltecendo o valor e a expansão da indústria de tecidos em nossa terra. Congratulou-se, finalmente, com a população de Santa Luzia pelo optimo melhoramento com que acaba de ser dotada aquella localidade.”
“O Sr. Senador Modestino Gonçalves, pouco antes do regresso do Sr. Secretário da Agricultura, que se deu às 17 horas, offereceu a S. Ex. e sua comitiva um ligeiro lunch, em sua residência.”
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