A luta de moradores de Santa Luzia para evitar uma tragédia ambiental

A luta de moradores de Santa Luzia para evitar uma tragédia ambiental
Área da fazenda Vicente Araujo, à esquerda, e o Rio das Velhas, à direita; a igreja matriz é vista à direita ao fundo. Imagem: Google Earth.

Artigo fundamental para quem quer conhecer de perto a luta de moradores para transformar a a antiga fazenda de Vicente de Araújo, à beira do Rio das Velhas, em um parque muncipal

Site Manuelzão – UFMG

Um projeto imobiliário planejado às margens do Rio das Velhas em Santa Luzia, na Grande Belo Horizonte, tem gerado forte oposição de moradores. O empreendimento “Cidade Jardim”, em processo de licenciamento pela prefeitura, prevê o desmate de 2.500 árvores de Mata Atlântica, alterações paisagísticas ao lado do centro histórico, considerado patrimônio cultural de Minas Gerais, além do alteamento de uma área de várzea e impermeabilização do solo que podem agravar os impactos das inundações recorrentes na cidade.

A construtora Emccamp pretende parcelar o solo da antiga fazenda Vicente Araújo em 548 lotes para fins residenciais e comerciais. A fazenda tem 50 hectares, o equivalente a 50 campos de futebol, e as intervenções incluiriam subir o nível do terreno para evitar que inundações cheguem aos lotes. Mas o temor é de que a execução do projeto comprometa a integridade ambiental e o patrimônio histórico-cultural da cidade e piore a situação do restante da população das partes mais baixas.

Os moradores de Santa Luzia conhecem bem os impactos das inundações às margens do Velhas, junto à área em que está previsto o empreendimento. Por três anos seguidos, 20202021 e 2022, pontes foram interditadas, bairros ficaram ilhados e centenas de pessoas tiveram que sair de suas casas.

Santa Luzia inundada após temporal em 2022; local está logo abaixo do terreno da fazenda Vicente de Araújo, visto ao fundo à esquerda. Imagem: Reprodução/Thiago Augusto drones.

“Você não tem noção de como fica quando alaga”, relembra com consternação Rosa Werneck, advogada, professora e liderança da ONG “Solidariedade, Todos Juntos Sempre”. “Nós precisávamos atravessar as áreas alagadas de barco para poder levar alimentos aos que ficaram presos em suas casas”.

A fazenda Vicente Araújo se estende de uma parte alta, próxima ao cemitério e ao centro histórico, até a parte baixa, às margens do rio. Assim, tem uma área de várzea que serve como planície de inundação e o amplo trecho restante contribui para a absorção das águas da chuva. A vegetação presente ajuda nos dois casos. Com a impermeabilização e o aplainamento da área, as águas chegarão quase totalmente — e com mais força — à parte baixa e a bairros a jusante.

Vista abrangendo o Rio das Velhas, a área da fazenda Vicente Araújo e o centro de Santa Luzia. Imagem: Google Earth.

Protestos e revisão de anuências

Em junho, moradores expressaram sua contrariedade à construção do empreendimento. Eles ressaltam que a solução apresentada pela Emccamp Residencial para impedir a entrada da água no loteamento, o alteamento do terreno e a construção de um dique de concreto, tornaria ainda pior o impacto de inundações em bairros na parte baixa da cidade.

O Conselho Municipal do Patrimônio Cultural (Compac) de Santa Luzia vem realizando audiências públicas para discutir o assunto. Porém moradores relatam descaso da Emccamp com os apelos apresentados durante as reuniões.

Glaucon Durães, mestre em Ciências Sociais pela PUC Minas, membro do movimento Salve Santa Luzia e conselheiro municipal de Saúde e do Patrimônio Cultural criticou as atitudes da empresa. “A população se sentiu revoltada com essa situação, sobretudo porque são pessoas que, em todos os anos em que há enchentes, perdem tudo”, relatou ao Estado de Minas, após reunião do Compac em julho.

Moradores também denunciaram que na reunião realizada em agosto, para ouvir os argumentos da população, a mesa de discussão foi esvaziada.

Também em agosto, o Conselho de Meio Ambiente (Codema) de Santa Luzia, ligado à Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SMMA), decidiu, por seis votos a um, reanalisar a licença prévia ambiental concedida à Emccamp para o Cidade Jardim. A decisão foi motivada pelas diversas alterações realizadas no projeto após sua aprovação pelo Codema em 2021 e vai de encontro a uma manifestação do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) sobre o assunto.

Recomendação contrária do MP

Integrantes do movimento Salve Santa Luzia manifestam-se contra o “Cidade Jardim”. Foto: Salve Santa Luzia.

A Emccamp protocolou em 2020, na SMMA, um pedido de licença prévia para o loteamento, que foi inicialmente aprovado com base em um parecer técnico feito para subsidiar a análise do Codema e um estudo de impacto cultural, dada a relevância histórico-cultural da área. À época o loteamento era classificado como de “potencial poluidor médio e porte pequeno”.

No entanto, os promotores Evandro Ventura da Silva, da 6ª Promotoria de Justiça da Comarca de Santa Luzia, e Lucas Pardini Gonçalves, da Promotoria de Justiça do Meio Ambiente das Bacias dos Rios das Velhas e Paraopeba, ressaltam que o projeto foi substancialmente alterado desde então, não se enquadrando mais como um empreendimento de interesse social e ambiental sustentável. Assim, as anuências anteriormente concedidas não seriam mais aplicáveis.

A recomendação, de junho deste ano, faz parte dos autos de uma ação civil pública movida pelo MPMG contra o empreendedor e o Município de Santa Luzia. Os promotores pedem ao prefeito, Luiz Sérgio Ferreira Costa (PSD), e ao Secretário de Cultura e Turismo, Cassiano Luís Boldori, para que desconsiderem as anuências concedidas ao projeto pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha).

Os promotores destacam que a localização do loteamento, ao lado do núcleo histórico tombado, pode causar um impacto significativo ao patrimônio cultural local. O Iepha já havia alertado que qualquer modificação no projeto original exigiria uma nova análise e manifestação, conforme uma deliberação normativa do órgão.

À frente da SMMA, o secretário Wagner Silva da Conceição comunicou na reunião de agosto do Codema que a recomendação foi rejeitada pela Procuradoria-Geral do Município, conforme noticiou o portal local Luzias. Mesmo assim, há concordância quanto à alteração substancial do projeto da Emccamp e a licença prévia será analisada novamente pelo Codema.

As macaúbas

 

Palmeira macaúba ilustrada por Johann Moritz Rugendas, circa 1822-25, no contexto da Expedição Langsdorff. Imagem: Acervo Instituto Moreira Salles.

Outro ponto relevante à questão patrimonial, mas não relacionado à recomendação do MPMG, foi o reconhecimento recente da palmeira macaúba como patrimônio cultural natural de Santa Luzia. Por unanimidade, os conselheiros do Compac aprovaram em junho um requerimento de abertura de processo de tombamento da palmeira também conhecida como coco-de-espinho (e de nome científico Acrocomia aculeata), que é muito presente na paisagem da cidade, empresta o nome ao famoso convento/mosteiro e foi historicamente usada pelas comunidades locais para a produção de óleo e sabão.

Na área da fazenda Vicente Araújo, como em outras áreas verdes da cidade, há vários espécimes da palmeira macaúba. A Secretaria Municipal de Cultura e Turismo agora prosseguirá com a análise do requerimento, mas a legislação patrimonial já concede proteção legal aos bens em processo de tombamento.

A proposta de um parque

Com uma população de quase 220 mil pessoas, Santa Luzia atualmente não tem um parque municipal. Em vez de um loteamento, a comunidade tem se mobilizado em favor da construção do primeiro parque da cidade no local. O projeto do parque Vicente Araújo visa transformar o terreno em um espaço público voltado para convivência e sustentabilidade, respeitando o Rio das Velhas e oferecendo benefícios sociais e econômicos.

“Ao contrário de Belo Horizonte, que já foi fundada com um parque municipal central e, ao longo do tempo, foi constituindo vários outros parques, Santa Luzia não priorizou espaços públicos saudáveis”, comenta Glaucon Durães, integrante do movimento Salve Santa Luzia, que leva à frente a proposta. “Então nossa luta é pela construção do primeiro parque natural municipal da cidade”.

Desenvolvido pelo arquiteto e urbanista Victor César, o projeto do parque alagável e produtivo propõe a integração de agroflorestas, hortas urbanas e a utilização de recursos naturais, como o bambu, para promover práticas de produção sustentável. A iniciativa também busca restaurar a vegetação nativa e capacitar a população em técnicas de cultivo, contribuindo para a segurança alimentar e a geração de renda.

Além disso, inclui a criação de espaços de lazer e convivência, a instalação de ciclovias e caminhos para pedestres ligando o centro comercial e o centro histórico da cidade e realização de eventos culturais e feiras. Os benefícios associados seriam melhor qualidade de vida para os frequentadores, maior interação social, melhor conexão entre pólos movimentados da cidade, incentivo à mobilidade sustentável e fortalecimento das trocas e da economia local.

Centro histórico de Santa Luzia, visto a partir do Rio das Velhas, desenhado por Dom Pedro II em seu diário em 1881; ao fundo está a igreja matriz. Imagem: Reprodução/Acervo Museu Imperial.

Esses pontos são orientados pelo esforço de promover o uso e a ocupação sustentável da área de várzea às margens do Velhas, incorporada como zona alagável e projetada para coexistir com uma zona de transição, com áreas verdes e com vias, equipamentos públicos e edificações, respeitando as características do terreno. O parque, escreve Victor César no projeto, é uma “contraproposta ao loteamento”.

Glaucon também destaca outro aspecto. “O espaço ideal [para a construção do parque] é a fazenda Vicente Araújo, entre outros motivos, por esse espaço ser também a área de entorno da visada do centro histórico, que é um conjunto arquitetônico tombado pelo a nível municipal e estadual. Esse entorno da área de tombamento faz parte do conjunto, da ambiência da Santa Luzia colonial”.

Conheça a íntegra do projeto do parque Vicente Araújo. Um abaixo-assinado criado por moradores em apoio à criação do parque pode ser assinado aqui.

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